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26 de janeiro de 2011
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17:36

Cinco Vezes Favela Hoje e Ontem

Por
Sul 21
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Assisti com verdadeira emoção ao filme “Cinco Vezes Favela – Agora por Nós Mesmos”.

Quem viveu, no início dos anos sessenta, a efervescência de um Brasil grávido de projetos e esperanças, abortados depois pela ditadura, e quem participou dos movimentos e experiências do movimento chamado “cultura popular”, ao assistir esse filme, tem a sensação de ver o completamento de um ciclo. Um filme completa o que outro (o “Cinco Vezes Favela” de 1962) começou.

Naquele início de década, emergia o protagonismo de um novo estamento social: os jovens.

Vivendo, hoje, em um mundo em que grupos categorizados por gênero, etnia e faixa etária (inclusive a infantil) constituem-se com personalidades próprias, como sujeito e objeto dos processos políticos, econômicos e culturais (ao menos na cultura ocidentalizada), é difícil, imaginar, hoje, uma sociedade em que apenas um grupo social (adulto, masculino) detinha praticamente a exclusividade da participação. A partir daqueles anos, começa uma revolução cultural com acentos políticos, em várias partes do mundo. Minorias ou grandes parcelas discriminadas da população passam a reivindicar identidade e obtêm papeis importantes nos processos social, político e econômico.

Naquela época, no Brasil, o movimento estudantil, liderado pela União Nacional dos Estudantes assumia-se como força política atuante no tabuleiro nacional. O engajamento nas causas sociais se fazia das mais diversas maneiras e entre elas, pela intervenção nas manifestações culturais. O movimento estudantil discutia a invasão da indústria cultural, com formas e valores alheios às raízes nacionais, a serviço de uma sociedade de consumo que recém era formada. Defendia uma arte nacional e popular, embora essas qualificações estivessem envoltas em mitos, contradições e polêmicas. A arte engajada era promovida como panaceia e como única forma válida de criação.

Na verdade, era promovida uma arte a serviço da politização, enfrentando a alienação histórica e as novas formas de controle cultural que eram introduzidas (e essa redução do fazer cultural era francamente admitida com a generosidade de uma geração que lutava pelo futuro). Brecht justificava que se vivia em tempos sombrios (ou “de guerra”, como era traduzido), onde a luta justificava as simplificações e Paulo Freire procurava ir mais além e mais fundo.

O Centro Popular de Cultura da UNE produzia, então, música, teatro e cinema para “levar cultura ao povo”, para “politizar’, para “conscientizar”. No Nordeste, o Movimento de Cultura Popular do Recife foi mais amplo e profundo, procurando pesquisar as formas de manifestação cultural do povo da região e interagir com elas. Em nosso estado, também houve tentativas e experiências, nas tentativas de criação de um movimento pela cultura popular em Porto Alegre (que não chegou a vingar) e pelas atuações do Centro Popular de Cultura da União Estadual de Estudantes que fez inúmeras apresentações na capital e no interior, acompanhando, também, a UNE Volante a Florianópolis (com um espetáculo original).

E o CPC da UNE subia o morro (a favela até então só existia “pendurada no morro”, “pertinho do céu, onde a lua faz clarão” na visão romantizada da época). Queria dar voz e imagem aos favelados. Os estudantes iam fazer um cinema contaminado com a vida favelada. Era o tempo do Cinema Novo com o Brasil sendo louvado pela crítica internacional. O filme da UNE, “Cinco Vezes Favela” veio nessa onda. As diferenças estéticas e ideológicas com os ícones do cinemanovismo, à distancia não parecem tão essenciais.

Produzido pela própria UNE, o filme teve pouca repercussão, como seria de prever, mas cumpriu seu papel militante com belo resultado estético e foi reconhecido pela crítica, tornando-se obra mítica na história do cinema brasileiro. Dos cinco diretores-estudantes, Marcos Farias, Miguel Borges, Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, os três últimos consagraram-se nas suas carreiras de cineastas.

E foi justamente um deles, Cacá Diegues que apostou em uma nova proposta que comemora, homenageia e atualiza a experiência do CPC. Com um projeto apoiado por ONGs como a Central Única das Favelas – Cufa, Nós do Morro, Observatório de Favelas, AfroReggae e Cinemaneiro, a produtora Luz Mágica, do próprio Cacá Diegues e de Renata Magalhães levou a cabo esse projeto que, mais do que a simples criação de um filme, proporcionou oficinas técnicas nas comunidades das favelas do complexo da Maré, Vidigal, Cidade de Deus, Parada de Lucas e da Lapa. O resultado é admirável. Atores e equipes de filmagem (oitenta e quatro dos duzentos e vinte e nove jovens selecionados para as oficinas) apresentam uma obra madura, sensível, cujo principal mérito, além das qualidades técnicas, é o olhar autêntico e comprometido com a realidade bem conhecida e vivida por eles. Lirismo, beleza, luta pela condição de cidadãos e auto-estima estão presentes em um discurso que não tem nada de demagógico ou paternalista. Mas também a dureza da violência sempre à espreita, de comunidades marginalizadas convivendo com uma sociedade que contribui para a manutenção do crime organizado e da dificuldade em construir saídas. A violência é manifestada de forma traumática, em desfecho de um dos segmentos que não fica nada a dever a histórias de trágicas escolhas humanas.

Mas não quero fazer crítica cinematográfica e sim salientar o significado dessa nova realização, em termos históricos. Volto à afirmação de sentir um completamento de ciclo. Imagino um arco, ligando o primeiro filme ao mais recente – como se uma idéia, uma força vital tivesse sobrevivido acima de todas as vicissitudes de quase cinquenta anos, para ressurgir como proposta e experiência novas, maduras, férteis.

Lembro outro caso, o do filme “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho, com a história de João Pedro Teixeira, líder camponês paraibano assassinado em 1962. Coutinho começou as filmagens no início de 1964 e foi surpreendido pelo golpe, tendo as filmagens interrompidas por um cerco militar. Dezessete anos após, ainda nos albores da lentíssima abertura, Coutinho volta ao Engenho da Galileia e consegue encontrar a viúva de Teixeira, que vivia na clandestinidade. O filme passa a ser, então um documentário sobre a antiga filmagem e de certa forma, uma intervenção sobre a própria vida dos protagonistas remanescentes. Temos aí, também uma retomada e uma superação, dentro do contexto da época, uma evocação sofrida e ainda angustiosa, em expectativa da redemocratização (antecipando outros tantos anos em que o país penou na busca de um caminho seguro, com crises, recaídas e desilusões).

O novo “Cinco Vezes Favela” repete, de certa maneira o exemplo do filme de Coutinho, mas já ancorado no tempo presente.

Nos anos sessenta, os estudantes pensavam em subir o morro para “levar cultura” à favela, para politizar; faziam filme com temas e tipos da favela querendo dar voz e visibilidade aos marginalizados, querendo fazer a denúncia social que poderia sensibilizar os da cidade oficial. Nesse processo, muitos aprenderam, muitos foram marcados para sempre com a visão e sentimento daquela outra gente, tão próxima e tão distante. Essas marcas levaram uns tantos a uma outra marginalidade, na clandestinidade, nas prisões e nas mortes durante a ditadura. Outros fizeram a travessia de todos os exílios, tanto estrangeiros quanto na vida reprimida dentro do país.

E a roda viva da história vai girando e roda o mundo, levando a favela para as cidades de deus e dos novos diabos. Vivemos ainda em tempos de sombras, desdobradas das antigas ou novas, um mundo em profunda crise econômica, ambiental, cultural. As sementes do crime organizado germinaram no terreno fértil da marginalização social casada com uma sociedade onde a droga passou a ser objeto de consumo básico de todas as classes e idades, sob o beneplácito das autoridades omissas ou coniventes e das parcelas mais favorecidos da sociedade. A favela já não é só morro, não é apenas carioca, mas povoa o cenário de todas as cidades brasileiras. O Estado se fez ausente e toda a população incluída na sociedade de consumo contentou-se em erguer barreiras culturais e físicas para que a “incivilização” da favela seja contida nos seus guetos (e os mais abastados defendidos nos seus respectivos guetos de luxo).

Mas novos roteiros são forjados na vida, como novos filmes, não refilmados, mas recriados e criativos. O novo “Cinco Vezes Favela” agora é feito POR ELES MESMOS. Mas os “mesmos” não apenas figuram ou fazem o filme, mas se fazem nas oficinas, na criação das (sua próprias) histórias, na construção da obra, na esteira da divulgação e da exibição (foram elogiados em Cannes e Gramado, premiados em Paulínia e Biarritz, andaram por Havana, San Francisco, Yokoama, Antalya e Porto).

E Cacá Diegues mostra que o antigo aprendizado valeu. Não só cinema foi aprendido, na primeira vez. Assim como tantos que se contaminaram com a solidariedade aos excluídos, ao longo de todos esses anos, o cineasta aprende e dá a lição de que a criação cultural pertence a todos e que pode emancipar e libertar.

Nesse nosso país tão desigual, de uma maioria ainda alienada e novamente alvo de novas alienações, tão excluída e novamente alvo de novas exclusões, lampejam sinais de novos tempos, novas possibilidades, novas atitudes. Os avanços dos últimos anos, no resgate dos prisioneiros da miséria absoluta, na geração renda, no emprego, na educação, na consolidação da saúde macroeconômica, nas políticas para fazer voltar a presença da cidadania às áreas marginalizadas, tudo isso sinaliza a possibilidade um novo ciclo histórico. Mesmo que tudo o que tem sido feito seja muito pouco, mesmo que novos desafios continuem crescendo, como os riscos ambientais, a depreciação cultural e a inércia dos velhos e viciados hábitos políticos, mesmo assim, parece abrir-se uma nova janela de oportunidade histórica.

Nesse sentido, com todo seu senso de realismo que parte da autenticidade do vivido, “Cinco Vezes Favela Agora por Nós Mesmos” pode figurar como um retrato (em construção) do nosso novo tempo brasileiro (em construção), reatando com um passado fértil e superando-o com criatividade. Como diria um povo severino: “belo porque tem do novo a surpresa e alegria”.

* Luiz Antonio Timm Grassi é engenheiro civil com especialização em planejamento metropolitano e atuação na área de saneamento e gestão de recursos hídricos. É um dos autores do livro “Tempo das Águas”. Bacharel em Hiistória, com especialização em América Latina, tendo lecionado na Faculdade Portoalegrense de Filosofia, Ciências e Letras. Membro do conselho editorial do jornal da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – ABES-RS e participante da comissão editorial do livro “Em defesa da vida”. Estou coordenando, com a artista Zoravia Bettioll, a Comissão Pró-Museu das Águas de Porto Alegre.


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