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20 de novembro de 2010
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17:00

Via Campesina ajuda haitianos a superar tragédias

Por
Sul 21
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Via Campesina ajuda haitianos a superar tragédias
Via Campesina ajuda haitianos a superar tragédias

 

Thalles Gomes
Foto: Thalles Gomes

Felipe Prestes

Como se não bastassem as mazelas de uma política instável e as dificuldades socioeconômicas e ambientais, o Haiti tem sido assolado por tragédias em 2010. Os problemas não cessaram, depois que a capital Porto Príncipe foi destruída por um terremoto, que provocou a morte de 300 mil pessoas e deixou 1,5 milhão desabrigadas. Agora, uma epidemia de cólera se alastra pelo país, que também sofre com a costumeira passagem de furacões.
Um pequeno grupo de brasileiros, coordenado pela Via Campesina, trabalha para amenizar as dificuldades por que passa o povo haitiano e para que a imagem do país mundo afora não fique marcada apenas por tragédias e miséria. O gaúcho José Luis Patrola coordena o grupo da Via Campesina, batizado de Brigada Dessalines (Dessalines foi um dos heróis da independência haitiana), que desde 2009 coopera com camponeses haitianos. Patrola está no centro de apoio do grupo, que fica na província de Latibonit, região mais atingida pela epidemia de cólera.

Ele conta, por e-mail, que o número de mortos pela doença já ultrapassou os 1.110, e que há 18.382 haitianos hospitalizados. O problema se deve especialmente à qualidade da água no país – é pela água contaminada que a cólera se espalha – e também pela precariedade dos serviços de prevenção e tratamento. Em países com melhores condições, a cólera já não é, há bastante tempo, uma doença tão letal. “A grande maioria dos mortos são camponeses da região de Latbonit que consumiram água contaminada. Os hospitais da região estão lotados há um mês”, conta Patrola.

Para Patrola, a comunidade internacional precisa repensar o tipo de auxílio que dá ao Haiti. Ele explica que problemas estruturais do país precisam ser resolvidos. Não bastam paliativos emergenciais. A passagem do furacão Tomas, por exemplo, há duas semanas, devastou plantações nas regiões Sul e Noroeste do país e pode gerar desabastecimento de alimentos no Haiti nos próximos meses. “O Haiti vive um grave problema de desmatamento, acompanhado por técnicas agrícolas predatórias ao meio ambiente, que levarão a um caos generalizado caso o problema não se resolva de maneira sólida”, explica.

É o que explica também o colega de Patrola, o alagoano Thalles Gomes. “Uma das grandes crises do Haiti é ambiental: 95% do país estão desmatados. Isso agrava o efeito de terremotos e ciclones”, diz. Gomes faz parte da Brigada Dessalines e esteve no Haiti entre abril e outubro de 2010. De passagem por Porto Alegre, nesta semana, teve um longa conversa com o Sul21.

Thalles Gomes
Foto: Thalles Gomes

Thalles conta que o grupo trabalha no Haiti desde 2009. Os objetivos principais são a cooperação agrícola e o auxílio aos camponeses haitianos, para que estes problemas ambientais possam ser sanados. Em 2010, a Brigada Dessalines já instalou 1.300 cisternas no interior do Haiti. As cisternas, feitas de polietileno (um tipo de plástico), são são fáceis de instalar e utilizadas em emergências. Foram obtidas em parceria com o governo da Bahia.

O grupo também ajudou a formar seis bancos de sementes no país, porque grande parte dos camponeses não consegue armazenar sementes e precisa comprá-las. E criou ainda viveiros de mudas, para auxiliar o processo de reflorestamento tão necessário no país. Ao todo, 40 brasileiros da Via Campesina já passaram pelo Haiti neste período, trabalhando para a Brigada, que também recebe auxílio e auxilia pessoas de outras partes da América Latina. “A gente recebeu paraguaios, argentinos, venezuelanos e colombianos. Servimos como centro de apoio para quem passa por lá”.

Para além da tragédia

Após o terremoto de janeiro de 2010, a Brigada intensificou suas atividades, enviando, além de pessoas especializadas na questão agrícola, médicos, enfermeiros e pessoas ligadas à construção civil. “A ideia não era ajudar diretamente as vítimas do terremoto, porque não é nossa especialidade, mas ajudar os camponeses neste momento difícil, porque o terremoto atingiu a capital Porto Príncipe – 300 mil mortos e 1,5 milhão de desabrigados -, mas as pessoas desabrigadas foram para o campo. O Haiti já tem problema forte de estrutura no campo, com o terremoto isso piorou”, conta Thalles.

Neste novo grupo, Thalles – graduado em Cinema, e membro da Comissão Pastoral da Terra, que integra a Via Campesina – foi enviado como responsável pela área de comunicação. Ele conta que sua tarefa foi atuar em dois níveis. Um deles era a cooperação com rádios locais, ligadas a organizações de camponeses. Thalles explica que, devido ao analfabetismo de 40% e à falta de infraestrutura no Haiti, o rádio é o meio de comunicação mais difundido. “Os haitianos têm o hábito de conviver com o país através do rádio”.

Bruno Alencastro/Sul21
Thalles Gomes: "É preciso pensar o Haiti para além da tragédia" (Foto: Bruno Alencastro/Sul21)

A atuação da Brigada neste sentido foi feita em parceria com o governo venezuelano. Está sendo desenvolvido um projeto para fortalecer 25 rádios que Thalles chama de comunitárias, por sua estrutura. “Apesar de terem licença comercial, grande parte das rádios do país funcionam com estrutura de rádio comunitária e não têm equipamentos básicos de transmissão. As músicas são tocadas em fita cassete”, exemplifica. Ele conta que as rádios do interior se beneficiam do fato de o Haiti ser montanhoso. Instalam seus transmissores precários no alto das montanhas, conseguindo assim atingir um grande número de lares. Como a energia elétrica no país é racionada, estas rádios também dependem de placas solares ou geradores. “A ideia é criar condições mínimas para o funcionamento destas rádios”.

O outro nível de atuação de Thalles Gomes foi produzir informação para ser disseminada no Brasil e em outros países da América Latina. Do Haiti, Thalles colaborou com diversos órgãos da imprensa latinoamericana e produziu dezenas de matéria – trabalho que continua desenvolvendo mesmo estando no Brasil. Ele explica que sua missão é mostrar para a América Latina um Haiti não só como um país onde a sorte passou longe. “O Haiti só tem sido manchete na tragédia. Nossa perspectiva era mostrar o Haiti para além dos mortos. A gente queria mostrar a economia, a cultura e a política haitiana. Para além da miséria tem cotidiano. Tem futebol, festa, religião, vodu, música. Tem o dia-a-dia. Acho que, quando se pensar no Haiti, tem que se pensar para além da tragédia”, afirma.

Thalles conta que a experiência no Haiti foi “divisora de águas” em sua vida e que uma das coisas que mais o surpreenderam foi a consciência histórica do povo haitiano, presente em todos os níveis da população, do camponês ao estudante universitário. Eles têm conhecimento da própria história: o que foi a revolução que levou o país à independência, quais são os interesses internacionais que estão em jogo, por que o país chegou neste ponto. Isto foi o que mais me impactou positivamente”, diz.

Ele também exalta dois aspectos culturais que considera mais relevantes no país caribenho: o idioma kréyol e a religião vodu. “São duas criações haitianas. O kreyol é uma língua que foi criada pelos escravos. Eles falavam de uma forma que os franceses não podiam entender. A partir daí conseguiram se organizar para se libertar. E o vodu tem elementos das culturas africana, indígena e europeia. Também foi a partir do vodu que a revolução começou. Hoje em dia é um dos poucos espaços de organização da população, porque no vodu não há interferência estrangeira branca”, diz.

 

Thalles Gomes
Biscoitos de barro servem como alimento a haitianos (Foto: Thalles Gomes)

Críticas à atuação do Brasil

Thalles Gomes considera a atuação do Brasil no Haiti à frente da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) um “contrassenso” com a política externa proposta pelo Governo Lula, de integração e cooperação com os povos da América Latina e Caribe. “A proposta da Minustah era criar a ideia de uma cooperação Sul-Sul, então ela é formada apenas por exércitos de países subdesenvolvidos. Mas isso mascara uma ocupação militar. O que o Haiti precisa não é de armas, mas de solidariedade na área econômica e social”, afirma

Thalles relata que a missão da ONU não tem ajudado na reconstrução do país, mas apenas tratado de reprimir a população, quando há distúrbios causados pela desordem política e social e pelos desastres naturais. “Em seis meses no Haiti não vi nenhuma obra feita pelo Minustah. O que eles fazem é como o Bope faz nas favelas do RJ: trazer a estabilidade com repressão”.

Como se isso não bastasse, há fortes indícios de que a cólera chegou ao Haiti por meio de soldados nepaleses da Minustah contaminados. Devido a esta suspeita, haitianos têm ido às ruas para protestar contra a missão. Nos protestos três haitianos já morreram, e Thalles mostra isto como um exemplo da repressão feita pelas Nações Unidas. “A Minustah não consegue dar respostas concretas quando a população precisa. Não conseguiu dar respostas concretas ao terremoto, não conseguiu dar respostas concretas para evitar os danos causados por ciclones. E para uma epidemia que pode ter sido trazida pela própria ONU não consegue dar respostas rápidas e claras”.

Thalles Gomes
Reconstrução do país caminha a passos lentos demais (Foto: Thalles Gomes)

Thalles aponta as contradições do modelo de ajuda humanitária que é realizado pela ONU no Haiti. Ele aponta que a ONU agora acena com mais US$ 164 milhões para combater a cólera e que já foram despendidos, desde 2004, US$ 3,6 bilhões apenas para manter as operações da Minustah no Haiti. Enquanto isto, cerca de 50% da população haitiana ainda permanece abaixo da linha de pobreza.

Para explicar o que ocorre no Haiti, Thalles cita um termo sugestivo, cunhado pela jornalista canadense Naomi Klein: capitalismo do desastre. “O Haiti é o país mais pobre da América, mas é o que mais recebe ajuda internacional no mundo. É um dinheiro que chega a o país, mantém os altos salários de funcionários da ONU e das ONG’s e esse dinheiro não muda as condições socioeconômicas do país”, resume.


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