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29 de novembro de 2010
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10:31

República dos Bacharéis? Antes fosse…

Por
Sul 21
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Nikelen Witter *

Já estão circulando na internet as novas “pérolas” do ENEM. Em alguns casos elas aparecem mescladas com as “pérolas” antigas, já clássicas. Em todos os casos, elas provocam riso; leituras coletivas para amenizar o dia; dão asas a uma indignação fraca, misto de divertimento e constrangimento. A partir de agora, possivelmente, as “pérolas” irão fazer parte do repertório de piadas de um ou outro que precise ser engraçado, sem ofender ninguém.

Convenhamos que, apesar do que tentou transparecer o escarcéu midiático das últimas semanas, o problema não é o ENEM. De fato, a prova é até inovadora e tenta exigir um pensamento mais complexo dos egressos do ensino médio. Essa exigência é, ao que parece, o que produz as “pérolas”. Porém, se houver interesse em se pensar o caso com seriedade, o ENEM – funcionando perfeitamente ou não – é só a ponta de um iceberg de problemas. Os quais, na grande maioria das vezes, são abordados em sua superfície, raramente, indo ao âmago da questão.

De fato, a própria “crise” do ENEM, tão alardeada nas nos meios de comunicação, por exemplo, é questão de superfície, rasa, com grandes tendências a ser, até mesmo, como uma falsa crise. Ela só existe por conta da mentalidade concurseira que se associou a cultura do país, e à sua percepção de que são os processos seletivos o caminho mais legítimo para ascensão sócio-econômica.

Assim, enquanto o ENEM foi tão somente um processo de avaliação do Ensino Médio, os problemas que ocorriam pareciam menores. Bastou ele se tornar um método de acesso à universidade e os caçadores de problemas viraram seus radares para ele. É claro que os vazamentos de provas ocorridos no passado são lamentáveis. Mas sua proporção foi aumentada pelo fato de o ENEM deixar de ser termômetro educacional para se tornar “chave dourada” do futuro universitário dos filhos da classe média e da classe média baixa. Os erros de montagem deste ano foram no mesmo caminho.

É certo que, em se tratando do universo histórico-cultural brasileiro não há como não se entender e respeitar o desejo pelo diploma universitário. E, seja o vestibular, o ENEM ou o PEIES (método adotado na minha região pela Universidade Federal), os processos seletivos são o obstáculo entre milhares de desejosos e seu objetivo “iluminado”. Nesse sentido, o concurso se torna o ritual de passagem (com suas angústias psicológicas e físicas) para o mundo no qual, em esperança, todos os sonhos deveriam se realizar.

Revestir os concursos deste papel os torna muito maiores do que eles deveriam ser e, pior, eles passam a dominar aquilo que deveriam apenas avaliar. Eles dominam tudo o que vem antes deles e, por consequência, obscurecem o que vem depois. Deixamos de ser a lamentável República dos Bacharéis e nos tornamos a odiosa República dos Vestibulandos, dos Concurseiros. E, quanto mais concursos e processos seletivos temos, mais teremos cursinhos preparatórios, polígrafos, provas-de-estudo vendidas nas bancas de revistas. Com as coisas neste tamanho, problemas nos processos seletivos são uma possibilidade quase natural e, até esperada, caso não seja montado um aparato de guerra para cada concurso. 

Assim, criticar a indústria dos concursos num país movido a isso, me parece deslocado ou, no mínimo, superficial. A indústria é um reflexo, como tudo mais. É uma adaptação ao modelo de oferta (o concurso) ao modelo de procura (o concurseiro). Não se pode fazer da “indústria do concurso” o vilão do sistema educacional brasileiro, porque ela não é. 

O grande problema está no que é deixado de lado, relegado ao segundo plano das preocupações, embora esteja sempre figurando nos discursos. E, quando se dá tanto relevo ao processo seletivo, o que é deixado de lado são justamente o ensino universitário e o ensino básico. São eles as grandes vítimas de um país (não falo apenas de governo, falo de sociedade) que pauta seu modelo educacional em concursos.

O ensino universitário vem há anos carregando-se de questões estruturais, nunca resolvidas. Pelo contrário, são problemas que tendem a se agravar com as novas cargas, constantemente lançadas sobre os ombros das universidades e, das quais, ela precisa dar conta, sem a correspondente reflexão dos por quês e comos. Reflexão esta que, em tese, deveria ser seu papel fundamental.

Apenas para dar uma ideia sobre o tamanho dos temas que são colocados em segundo plano, enquanto nos preocupamos com concursos.

1. Afinal, o que é ensino universitário? O que é ou o que deveria ser? Qual o papel da técnica, da ciência e da reflexão neste conjunto?

2. Ao que e a quem serve o ensino universitário? E, em contrapartida, a quem deveria servir?

3. É fato que se colocarmos mais gente na universidade teremos como resultado um país melhor?

4. É papel da universidade resgatar a cidadania educativa de todos os alunos que lhe chegam? Isso não deveria ser resolvido antes da chegada à universidade?

5. Pode a universidade, obrigada a fazer o que o ensino básico não fez – como terminar o processo de alfabetização e o letramento cultural – desenvolver, ao mesmo tempo, ciência e profissionalização de qualidade?

Não existem respostas prontas para estas questões. E, ao meu ver, elas atingem a todo o edifício educacional brasileiro. Tampouco se veem muitos debates sobre o assunto. E o fato é que se criou nos últimos tempos o pernicioso consenso
de que a posse de um diploma universitário pode resolver tudo. Pode erguer o país ao nível dos seus sonhos.

Porém, a realidade é que as nossas universidades trabalham demais e pensam de menos sobre si mesmas. Levam um tempo enorme para resgatar em seus alunos, o que deveria ter sido construído antes de eles sentarem em seus bancos. O resultado é uma vitória sim, mas ela podia ser maior.

No outro lado do espectro, a tirania dos concursos é ainda mais perversa e perniciosa. Ora, uma educação pautada nas exigências dos processos seletivos – seja o ENEM, o vestibular, ou qualquer outro – não forma cidadãos autônomos e pensantes. Forma concurseiros. Gente que aprende para responder as perguntas que lhe são feitas. Nada além. É um fato conhecido e cientificamente comprovado que quem estuda para provas, raramente irá reter mais do que a prova exige. E, convenhamos, se o foco é o concurso, porque qualquer estudante inteligente se esforçaria para aprender mais do que é necessário para passar e cumprir as exigências de pais, escola e estado? Seria um desperdício de tempo. Seria anti-produtivo.

Dessa forma, como criticar os pais para quem qualidade de ensino é traduzida por: “preparo para o concurso que possibilita o acesso à universidade”? Como se opor àqueles que buscam escolas cuja promessa é tornar o aluno capaz de passar no concurso. Afinal, não é esta a principal crítica à escola pública? A de que ela não consegue, em sua grande maioria, formar bons candidatos para os concursos de acesso à universidade? Não é assim que se costuma a medir o nível qualitativo de uma escola? Pela quantidade de alunos que ela coloca na universidade?

Nesses termos, também não é de admirar que o conceito de qualidade de ensino apareça como algo óbvio, auto-explicativo. No Brasil, qualidade de ensino básico é a capacidade de formar pessoas que entrem na universidade. Veja bem, não se trata de preparar o estudante para o ensino universitário, para o conhecimento científico, para o raciocínio lógico ou para a indagação sócio-filosófica. O preparo é para o processo seletivo. Nada mais.

Pessoalmente, eu questionaria uma educação cujo foco fosse criar universitários. Nosso sistema educacional somente se preocupa com a seleção. Assim, neste mundo em que “passar não é tudo, é a única coisa”, as pérolas do ENEM, para mim, já perderam a graça há algum tempo.

* Professora e historiadora


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