Opinião
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15 de outubro de 2010
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09:00

Matem a bruxa!

Por
Sul 21
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Nikelen Acosta Witter *

Antes de começar quero afirmar que não sou do tipo que acha que “a História se repete”. Não sou a favor de explicações que ponham a culpa em entidades despersonalizadas. Quem repete a história é a humanidade. E quando o faz trazendo de volta o que já fizemos de mais infame, pior se torna enquanto humanidade.

Tenho acompanhado esta campanha presidencial sem surpresa, embora com crescente asco pela estratégia agressiva adotada pela direita e apoiada por parte da mídia. Não que não se saiba o quão baixo estas táticas eleitorais podem ir. Os mais velhos certamente se lembram do episódio “filha do Lula” na disputa com Fernando Collor. Porém, a questão do aborto, tornada mote de campanha e fazendo levantar religiosos e humanistas, parece ter atingido um patamar ainda não alcançado em termos de torpeza. Não pelo tema, mas pela postura histórica que seu uso trai.

Antes de prosseguir, vamos deixar algumas coisas bem claras para quer a cortina de fumaça não turve as ideias de ninguém. NENHUM PRESIDENTE DA REPÚBLICA, EM UMA DEMOCRACIA, PODE ALTERAR SOZINHO, UMA LEI COM BASE CONSTITUCIONAL. Dito isso, a posição pessoal de Dilma ou Serra em relação ao assunto não tem o mesmo relevo (nem de longe) do que quiser e desejar a população brasileira em sua maioria. Qualquer alteração na lei que envolve o aborto só poderá ser feita com o amplo debate da sociedade brasileira e com a participação dos congressistas por ela eleitos. Sendo assim, a discussão sobre quem é a favor ou contra a descriminalização do aborto como mote de campanha é deslocada e está sendo vista com as cores erradas. Nossa(o) presidente eleita(o) terá de se ater a Constituição e à vontade soberana do povo brasileiro. Se este quiser que o aborto continue sendo crime, assim será. Se este quiser debater o tema por 2, 4 ou 10 anos, o papel da(o) presidente será garantir que isso aconteça.

Mas não é o tema (importantíssimo, claro) que chamo de baixeza, e sim a postura que transformou Dilma Rousseff em uma Medéia, uma bruxa sacrificadora de bebês em rituais satânicos, ateus e comunistas (colar essas coisas já é um esforço digno de nota).

Não, não há novidade nisso. É uma postura humana bem antiga desqualificar o outro com aquilo que é considerado culturalmente anti-natural. Os romanos acusaram os cristãos de sacrifícios infantis. Eles faziam? Claro que não, mas foi suficiente para justificar seu envio para que os leões os trucidassem nos circos sob os aplausos do povo. Os cristãos, por sua vez, mataram milhares de mulheres acusadas de copular com o demônio e matar bebês. Elas o fizeram? Duvido muito, mas foi o suficiente para que fossem queimadas vivas, ante a satisfação popular em acompanhar sua agonia. O Ocidente capitalista acusou os comunistas de comerem criancinhas. Isso aconteceu? Ora, por favor!

Agora temos essa “mulher” ousando querer ser presidente da República. Onde já se viu? Uma mulher tem de se contentar em ser mãe, ser temente a Deus e em dar suporte ao marido. Como? Ela não tem marido? Para mandar nela só temos o ex-presidente? E se ele não conseguir controlar a sanha da bruxa que quer ver “criancinhas mortas”? O interessante é que no momento em que a campanha Serra tornou o tema seu mote de campanha e de acusações, as propagandas pelo voto se encheram de mulheres grávidas e felizes. (Em tempo: grávidas felizes não pensam em aborto, logo seus filhos não estão sob nenhuma ameaça, ok?)

Então, voltamos à desqualificação do outro/outra pelo que é contra a natureza no entender da nossa cultura. O que poderia ser pior para desqualificar uma mulher do que torná-la uma “assassina de bebezinhos”? Viram o quanto é baixo? O quanto é torpe e indigno? Isso camufla, sob o véu da moral e dos valores da família brasileira, de forma muito conveniente, o revanchismo da direita, o machismo renitente da nossa sociedade, nossa imaturidade político-democrática e o medo atávico das mudanças estruturais.

Eu terei orgulho de pertencer a um país que ultrapasse essa onda de acusações pueris, que escolha com consciência seus governantes, que se recuse a repetir o que de pior já fizemos em nossa História. Mas, no momento, enquanto assisto as propagandas e telejornais, eu estou é com vergonha.

* Doutora em História


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