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14 de setembro de 2010
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21:40

Sinais dos tempos

Por
Sul 21
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O mercado é o novo fetiche  religioso da sociedade em que vivemos. Antigamente, nossos avós consultavam a  Bíblia, a palavra de Deus, diante dos fatos da vida. Nossos pais, o serviço de  meteorologia: “Será que vai chover?”. Hoje, consulta-se o mercado: “O dólar  desvalorizou? Subiu a Bolsa? Como oscilou o mercado de capitais?”.

Diante de uma catástrofe, de  um acontecimento inesperado, dizem os comentaristas econômicos: “Vamos ver  como o mercado re­age”. Fico imaginando um senhor, Mr. Mercado,  tran­cado em seu castelo e gritando pelo celular: “Não gostei da fala do  ministro, estou irado.” Na mesma hora os telejornais destacam: “O mercado não  reagiu bem frente ao discurso ministerial”.

Para as agências de  publicidade, o mercado no Brasil compreende cerca de 40 milhões de  consumidores. Neste país de 190 milhões de habitantes, uma minoria tem acesso  aos bens supérfluos. Os demais, só aos de necessidade indispensável.

O grande desafio das pessoas  em idade produtiva, hoje, é como se inserir no mercado. Devem ser  competitivas, ter qualificação, disputar espaços. Sabem que o sistema  recomenda não levarem a sério conotações éticas e encarar como quimérico um  planejamento de inclusão das maiorias. O mercado é, agora, internacional,  globalizado; move-se segundo suas próprias regras, e não de acordo com as  necessidades humanas.

A crise da modernidade é,  portanto, também a do racionalismo. No início da modernidade, principalmente  na época dos iluministas, a religião era considerada superstição. Camponeses  da Idade Média regavam seus campos com água benta, agradeciam aos padres (que,  diga-se de passagem, cobravam pela água benta) e depois louvavam a Deus pela  boa colheita. Até o dia em que apareceu um senhor oferecendo a eles um pozinho  preto, o adubo, que também custava dinheiro, mas não dependia da ira ou do  agrado divino – bastava aplicá-lo à terra e aquilo facilitava a colheita.

O adubo funcionou melhor que a  água benta! Muitos camponeses perderam a fé, porque a concepção de Deus  predominante na Idade Média era a de um Ser utilitário. (Por isso se costuma  dizer, em teologia, que Deus não é nem supérfluo nem necessário; é gratuito,  como todo amor).

Outrora falava-se em produção;  quem tinha um capital, precisava investi-lo, produzir. Hoje, fala-se em  especulação. Dinheiro produz dinheiro. A cada dia, através de computadores,  bilhões de dólares rodam o planeta em busca de melhores lucros. Passam da  Bolsa de Singapura para a de Tóquio, desta para a de Buenos Aires, desta para  a de São Paulo, desta para a de Nova York, e assim por diante. Agora, em  Singapura, provavelmente estarão discutindo o que fazer com US$ 6 bilhões  disponíveis no mercado.

Outrora, falava-se em  marginalização. Alguém marginalizado no emprego ainda tinha esperança de  voltar ao centro. Hoje, marginalização cedeu lugar a outro termo, exclusão – o  ser humano excluído não tem esperança de volta, porque o neoliberalismo é  intrinsecamente excludente. A exclusão não é um problema para ele, tal como a  marginalização era para o liberalismo: é parte da lógica de crescimento do  sistema e da acumulação de riquezas.

Antes, falava-se em Estado, o  importante era fortalecer o Estado. Um ministro da ditadura militar chegou a  declarar: “Vamos fazer crescer o bolo, depois haveremos de dividi-lo.” Só que  o bolo cresceu, e o gato comeu, não se viu o resultado. Aqueles mesmos  políticos que advogavam o crescimento do Estado defendem, hoje, a sua  destruição, com o sofisticado lema da ‘privatização’.

Não sou radicalmente contrário  à privatização, nem estatista. Há países ricos – como a França e o Reino Unido  – nos quais os serviços públicos estatais funcionam muito bem. Não é por serem  públicas que as empresas e os serviços devem operar negativamente. A história  é outra: muitos políticos, que deveriam ser homens públicos, estão  prioritariamente ligados a empresas privadas, de maneira que não têm interesse  em que as coisas públicas, estatais, funcionem bem. O maior exemplo disso é o  serviço de saúde no Brasil. São US$ 8 bilhões circulando por ano nos planos  privados de saúde, que atendem apenas 30 milhões de pessoas numa população de  190 milhões. Por que o SUS haveria de funcio­nar bem? Outrora, alguém  ficava doente e dava graças a Deus por conseguir um lugar no hospital. Hoje,  as pessoas morrem de medo de ir para o hospital. Hospital virou antessala de  cemitério.

A privatização  não é só econômica, é também filosófica, metafísica. Tem reflexos na nossa  subjetividade. Também nos tornamos seres cada vez mais privatizados, menos  solidários, menos interessados nas causas coletivas e menos mobilizáveis para  as grandes questões. A privatização invade até mesmo o espaço da religião:  proliferam as crenças ‘privatizantes’, que têm conexão direta com Deus. Isso é  ótimo para quem considera que o próximo incomoda. É a privatização da fé,  destituindo-a da sua dimensão social e política.

Enfim, hoje fala-se em  globalização; ótimo que o planeta tenha se transformado numa aldeia. O que  preocupa é constatar que esse modelo é, de fato, a imposição ao planeta do  paradigma anglo-saxônico. Melhor chamá-lo de  globocolonização!

*Frei Betto é escritor, autor de “Hotel Brasil – o  mistério das cabeças degoladas” (Rocco), entre outros livros.


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