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22 de setembro de 2010
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14:23

Desculpa para calar a opinião

Por
Sul 21
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Por Luiz Cláudio Cunha

Eu não frequento clubes que me aceitem como sócio. (Groucho Marx, 1890-1977, comediante, EUA).

O respeitado Clube de Editores e Jornalistas de Opinião do Rio Grande do Sul, que reúne duas dezenas dos mais importantes colunistas e blogueiros do Estado, tomou uma grave decisão na semana passada. Por escassa maioria, numa reunião virtual feita pela internet, o Clube de Opinião decidiu “não opinar” sobre o inclemente processo que a família do ex-governador gaúcho Germano Rigotto move contra um pequeno jornal de Porto Alegre, o JÁ.

A ação judicial, que completa dez anos, está matando financeiramente o jornal de cinco mil exemplares editado há 25 anos pelo jornalista Elmar Bones, que em agosto passado teve suas contas pessoais bloqueadas pelos advogados dos Rigotto. A valente opção não opinativa do Clube de Opinião teve uma bela desculpa: “evitar qualquer conotação política-eleitoral” antes do pleito de 3 de outubro, já que Germano Rigotto é candidato ao Senado pelo PMDB gaúcho. Num sereno, mas contundente editorial publicado no domingo (19) no site do jornal e reproduzido neste OI, Elmar Bones respondeu, batendo no osso da questão:

“Pode ser uma maneira cômoda de contornar uma situação espinhosa, mas essa interpretação não encontra base nos fatos e contraria a lógica da democracia. O processo eleitoral, que exige verdade e cobra opinião do eleitor, não pode ser usado como pretexto para a omissão, o silêncio e a desinformação”.

Bones, que como Groucho não é sócio do clube, poderia usar o raciocínio que o comediante Marx usava para definir “inteligência militar”: “Clube de Opinião sem opinião é uma contradição em termos”. A infeliz decisão da entidade gaúcha carteliza e uniformiza, por baixo, o que deveria ser livre e múltiplo: o pensamento. É o fundo do poço de uma incômoda questão que constrange, envergonha e deprime a imprensa do Rio Grande do Sul, um celeiro de bravos profissionais que iluminaram o jornalismo brasileiro nos momentos mais duros de sua história, quando era necessária muita opinião, muita coragem, muita resistência. Elmar Bones é um sobrevivente daqueles tempos, quando então comandava o CooJornal, uma das legendas da valente imprensa nanica que afrontava os generais da ditadura de 1964.

A omissão

A candente questão que o clube gaúcho tangencia é que o JÁ não está sendo punido por sua opinião, mas pela embaraçosa informação que publicou em 2001: o envolvimento de Lindomar Rigotto numa licitação fraudulenta na CEEE, a estatal de energia elétrica. Enxertado na diretoria financeira pelo irmão Germano, então o poderoso líder do governo do PMDB na Assembléia Legislativa, o mano Lindomar fez uma mistureba financeira tão grande que acabou sendo o personagem central de um CPI que indiciou ele, outras onze pessoas e onze empresas. O cabeça da quadrilha, que montou a operação na CEEE, era o irmão menos famoso de Rigotto, segundo o relatório final da CPI: “De tudo o que se apurou, tem-se como comprovada a prática de corrupção passiva e enriquecimento ilícito de Lindomar Vargas Rigotto”, escreveu corajosamente o relator e deputado Pepe Vargas (PT), apesar de ser primo de Lindomar e Germano.

Essa era a reportagem de capa que o JÁ publicou há dez anos, sob o título “Caso Rigotto – um golpe de US$ 65 milhões e duas mortes não esclarecidas”. Não tinha nada de opinião. Era pura informação, matéria prima do bom jornalismo, baseado em peças do Ministério Público e nos autos da CPI, agregando detalhes sobre a vida turbulenta de Lindomar, que acabou assassinado por assaltantes de sua casa noturna, no litoral gaúcho, em 1999. A matéria do jornal arrebatou em 2001 os principais troféus de jornalismo do sul do país – o Esso Regional e o ARI, da Associação Riograndense de Imprensa. E acabou premiada, também, com o processo da família Rigotto.

O Clube de Opinião achou por bem não opinar nada sobre este vergonhoso, continuado ataque ao primado da liberdade de expressão no país. Se levassem a sério seu pretexto para este mutismo – “evitar qualquer conotação político-eleitoral” –, os bravos formadores de opinião do Rio Grande do Sul deveriam se esquivar de gastar tinta e tempo com assuntos constrangedores como a bolsa-família da ex-ministra Erenice Guerra, que empregou a parentada em órgãos públicos e tinha no coração do governo Lula um filho tão empreendedor quanto o irmão de Germano Rigotto. A intermediação de Israel Guerra, conforme a capa da revista Veja da semana passada, arrumou para um empresário aflito um contrato camarada de R$ 84 milhões nas entranhas dos Correios. A lambança de Lindomar Rigotto, segundo a manchete do JÁ, lesou os cofres públicos gaúchos, em valores corrigidos, numa soma dez vezes maior: R$ 840 milhões, a maior fraude da história do Rio Grande.

A contradição

Se tivesse o mesmo comportamento caridoso que hoje oferta ao candidato Germano Rigotto, que imagina preservar, o Clube de Opinião deveria se esquivar também de falar sobre os fatos constrangedores que já demitiram quatro funcionários da Casa Civil de Lula e provocam evidentes embaraços na candidata Dilma Rousseff. É um escândalo de forte conotação política, e supostamente eleitoral, tanto quanto a ação que garroteia o jornal de Elmar Bones.

Apesar dessa contradição, nenhum dos bravos sócios do clube deixa de bater na Erenice, criatura criada por Dilma, que agora diz não ter nada a ver com isso: “Eu não posso responder por ela”, esquiva-se a petista. Aliás, a mesma desculpa de Rigotto, que alega não ter nada a ver com a perseguição ao JÁ: “Eu desconheço o processo contra o JÁ. Isso é coisa da minha mãe”, fantasia Germano. Dona Julieta Rigotto tem 89 anos.

Um dos mais ferozes membros do Clube de Opinião gaúcho é Políbio Braga, dono do blog mais influente e acessado do sul do país, com quase 100 mil assinantes. Militante estudantil de esquerda no início dos anos 1960 em Santa Catarina, foi diretor da Folha Catarinense, do Partido Comunista, onde era apenas simpatizante, não filiado. Chegou a ser presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), na época em que José Serra presidia a União Nacional dos Estudantes (UNE). Depois do golpe de 1964 foi preso pela ditadura uma dúzia de vezes e, na mais longa delas, cumpriu seis meses de pena no antigo presídio do Ahú, um bairro de Curitiba.

No comando de seu blog, hoje, Políbio é contundente, bem informado e impiedoso, principalmente com tudo que acontece no turbulento entorno da Casa Civil e da candidata petista à presidência da República. Quando Veja explodiu nas bancas no sábado (11/9), Políbio festejou: “Estoura escândalo maior do que o Mensalão no Governo Lula”, era a manchete do blog. Sobre o escândalo do irmão de Rigotto, matematicamente dez vezes maior do que o do filho de Erenice, quinze vezes mais estrondoso que a quadrilha dos 40 do mensalão chefiada por José Dirceu, Políbio não ousou escrever uma única linha, muito menos dar sua retumbante opinião. No fim de agosto, o Observatório da Imprensa abordou, pela segunda vez, a saga do JÁ e de Elmar Bones, num texto (“Como calar e intimidar a imprensa“) que teve larga repercussão na internet – e nenhuma no ágil e abrange nte blog de Políbio Braga.

O rabo

Autor desse texto, liguei várias vezes pedindo que Políbio abrisse espaço para o tema Rigotto vs. JÁ, confiando no belo lema que seu blog desfralda: “De rabo preso com a notícia”. Cansado de minha cobrança, Políbio acabou admitindo:

“Sobre este caso, devo te dizer que adotei uma linha de ‘rabo preso’ com meus amigos, que não são muitos, mas que prezo demais. Um deles é o Rigotto. Ao longo dos últimos 10 anos, tenho conversado com ele a toda hora, temos almoçado juntos, ele é fonte que consulto a todo momento, vou votar nele e também toda a minha família e os amigos que têm razões para fazer isto”.

Assim, descobri consternado que o Políbio eleitor prevaleceu sobre o Políbio jornalista e o seu festejado blog, além da notícia, tinha o rabo irremediavelmente preso a Germano Rigotto.

É justo esclarecer que Políbio Braga e seus colegas de clube não estão sozinhos neste vasto e silencioso constrangimento. Nenhum grande órgão da imprensa gaúcha se atreveu a mencionar o caso do JÁ e seus escandalosos antecedentes, de forte “conotação político-eleitoral” e um evidente poder letal sobre a boa imagem de Rigotto, que tem um chamativo coração vermelho como símbolo de sua campanha ao Senado.

Na RBS, a maior rede regional de comunicação da América Latina (Zero Hora, o maior do estado, e mais sete jornais, 21 emissoras de TV, 24 de rádio e sete portais de internet), o assunto passa batido pela pauta diária do conglomerado de mídia. Rigotto, sempre que pode, lembra aos amigos que tem uma relação especial de amizade com Nelson Sirotski, o diretor-presidente do grupo. O mesmo acontece no segundo maior grupo do estado, a Record, onde se destacam o Correio do Povo e a rádio Guaíba, hoje sob controle da Igreja Universal.

Na sexta-feira (10/9), aconteceu algo inesperado: o colunista do jornal e âncora da rádio Juremir Machado da Silva abriu corajosamente espaço no seu programa de uma hora, a partir das 13h, para ouvir Elmar Bones ao vivo no estúdio da rádio Guaíba. Juremir foi o primeiro nome importante do jornalismo sulista e a Guaíba o primeiro grande veículo da imprensa gaúcha que conseguiu quebrar o bloqueio de silêncio e abrir espaço para a saga do JÁ. Quando veio o primeiro intervalo do programa, um esbaforido executivo da área comercial irrompeu no estúdio para implorar ao entrevistador e a seu convidado: “Pelo amor de Deus, não misturem esta entrevista com a campanha eleitoral do Rigotto! O homem ‘é assim’ com o nosso presidente!”.

O pastor Natal Furucho, o presidente da Record no sul do país, seria mais um chefão da mídia que “é assim” com Germano Rigotto, o que explicaria o estrondoso silêncio midiático que envolve suas desditas.

O sumiço

Na quinta-feira (9/9), um dia antes da inédita entrevista na Guaíba, a história do JÁ ressuscitou no jornal O Sul, de Porto Alegre. Não era nenhuma ousadia da casa, mas a nota de abertura da coluna de Cláudio Humberto, um profissional que Políbio Braga inveja como um “respeitado e bem informado jornalista” e que é reproduzido em outros 36 jornais do país, além d’O Sul. Furando toda a imprensa gaúcha, o colunista de Brasília informava: “Bomba política explode no colo de Rigotto”. Era a notícia de que, após 15 anos sob um inacreditável “segredo de justiça”, a juíza Fabiana Zilles, da 2ª Vara Cível da Fazenda Pública, em Porto Alegre, dera por “concluso” o caso da roubalheira da CEEE. Ou seja, falta agora apenas a sentença da juíza sobre a maior fraude gaúcha, que atinge diretamente o mano esperto que Germano Rigotto plantou na estatal.

A coluna de Cláudio Humberto é publicada simultaneamente nos três jornais do Grupo NH, que domina a rica região do Vale do Rio dos Sinos, em Novo Hamburgo, Canoas e São Leopoldo, no entorno da região metropolitana de Porto Alegre. Apesar disso, estranhamente, a nota daquele dia que brilhava n’O Sul desapareceu num passe de mágica dos jornais do NH. O dono do grupo é Mário Gusmão, um dos dois brasileiros que integra a Comissão de Liberdade de Imprensa e Informação da poderosa Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol). O outro brasileiro é Gustavo Ick, também do jornal NH do mágico Gusmão. A comissão da SIP, como o Clube de Opinião gaúcho, jamais opinou ou sequer colocou em pauta o caso do JÁ.

No dia seguinte, na mesma sexta-feira em que Elmar falava na Guaíba, o blog de Políbio Braga no mesmo O Sul replicava com uma manchete forte: “Jogo pesado mira candidatura de Rigotto”. Citava a própria nota de véspera de Cláudio Humberto, que ele classificou como “oblíqua”, e condenava o “saco de maldades” contra o PMDB supostamente aberto pelo “resgate do caso do jornal JÁ, acionado em juízo pela mãe de Rigotto, ofendida com reportagens sobre o filho morto, Lindomar”. E mais não disse. Parecia uma mera travessura de um jornaleco irresponsável, enxovalhando a memória de um jovem desafortunado. Políbio esqueceu de fazer a conexão natural dos fatos que qualquer jornalista com o rabo preso com a notícia, só com a notícia, deveria fazer.

A resposta

O “resgate do caso do JÁ” foi engenho e bravura deste Observatório, o primeiro a contar os bastidores da ação dos Rigotto contra Elmar Bones (ver “O jornal que ousou contar a verdade“, 24/11/2009, e “Como calar e intimidar a imprensa“, 31/8/2010), assinados por este jornalista. O simples, inegável e transparente relato da saga do jornal e de seu editor, premiado pela reportagem e processado pela família do morto, virou “jogo sujo” na estranha interpretação do blogueiro Políbio Braga. Se não tivesse o rabo preso com o seu amigo Rigotto, ele poderia beber na fonte do límpido editorial que Elmar Bones publicou no site do jornal. Ali está claro que o caso do JÁ, engavetado desde julho de 2007, foi desarquivado em fevereiro de 2007 não pelo réu Elmar Bones, mas pelos advogados da própria família Rigotto. O saco de maldades, portanto, foi escancarado por quem, agora, teme sua repercussão político-eleitoral.

Definhando financeiramente, o JÁ teve em 2006 a altivez de recusar uma milionária oferta de um partido adversário do então governador Germano Rigotto, que se preparava para tentar a reeleição. A proposta era reimprimir 100 mil exemplares da edição maldita de 2001, contando os deslizes contábeis do irmão de Rigotto na CEEE, e espalhar a bomba pelo Rio Grande do Sul. A digna resposta de Elmar Bones, ao recusar a oferta, só cabe na cabeça de um jornalista que não tem rabo preso: “Nosso jornal não é instrumento político de ninguém”, ensinou o editor do JÁ, encerrando a conversa.

Os artigos pioneiros do Observatório ecoaram fundo nas redações dos principais jornais gaúchos – Zero Hora, Correio do Povo, Jornal do Comércio, O Sul –, evidência de que os bons repórteres e editores do sul continuam atentos e inquietos, todos eles constrangidos com o silêncio que vem de cima. Em telefonemas e e-mails enviados diretamente a este jornalista, que assina aqueles e este texto, uns e outros se mostram solidários a Bones, conscientes do crime que se comete contra a liberdade de expressão e absolutamente impotentes para executar ou simplesmente sugerir esta pauta obrigatória. “Os textos do Observatório constituem uma paulada em nossas consciências amorfas”, me disse um deles, em tom emocionado e sofrido. Apesar de ser de conhecimento público o nome da juíza, o endereço do tribunal e o número do processo do caso da CEEE, nenhum repórter teve a iniciativa de apurar esta história, como mandam as regras elementares do bom jornalismo, amarrado ap enas pela busca da verdade e do interesse público.

A fresta

Apesar das dificuldades, aos poucos o espírito guerreiro de Elmar Bones se afirma e se impõe, furando a bolha de silêncio, como aconteceu com o pioneiro Juremir, na Guaíba. O Estado de S.Paulo publicou uma matéria (11/9), enquanto notas esclarecedoras brotam em blogs influentes e solidários, como os de Carlos Brickmann, Cláudio Humberto e Ricardo Noblat. Dias atrás, o blog Conversa Afiada, de Paulo Henrique Amorim, abriu espaço para um inédito pingue-pongue com Elmar Bones, de enorme repercussão na internet pela história que parecia novidade, mas que já tem dez anos de agonia e resistência. Inédito, no caso, era a disposição do repórter de ouvir o réu de uma das mais longas ações da justiça contra a liberdade de expressão.

Parece improvável que Germano Rigotto e seus amigos consigam estancar o vazamento crescente de uma epopéia que não pode ser silenciada, não deve ser escondida e não pode ser tolerada. A verdade flui sempre pelas frestas cada vez mais largas de um sistema multimídia que confronta a mentira e desafia o silêncio – e torna caricata a figura anacrônica do “jornalista com rabo preso”. Na eleição de 2006, um pequeno instituto de pesquisas de Porto Alegre, o Methodus, desafiou o ridículo ao apostar na vitória do azarão Yeda Crusius contra os favoritos Germano Rigotto e Olívio Dutra. Deu no que deu.

Na semana passada, o Methodus publicou sua segunda pesquisa, encomendada pelo Correio do Povo para a corrida ao Senado no sul. Em relação ao levantamento do mês anterior, Ana Amélia Lemos (PP) subiu 12,4 pontos percentuais, chegando à liderança com 51,8%. Paulo Paim (PT) vinha em segundo, com 47,7%. Germano Rigotto (PMDB) caiu 6,8 pontos percentuais em relação à primeira pesquisa, ficando agora com 40,9%.

Pelo silêncio da grande mídia, não se sabe até que ponto a queda abrupta de Rigotto pode ser atribuída à verdade latejante do JÁ e ao potencial corrosivo do escândalo da CEEE. O bravo Clube de Opinião também não opinou sobre esta possibilidade.


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